Quem indaga é o jornalista José
Nêumanne. "Pode ser que a versão de Marcos Valério seja apenas uma
tentativa de jogar farinha no ventilador para merecer o prêmio pela
delação, com uma redução de sua pena. Mas, no mínimo, ela serve para
chamar a atenção devida para um episódio nunca esclarecido", ele afirma
Colunista do Estadão, José
Nêumanne afirma que o depoimento do empresário Marcos Valério sobre o
mensalão e o assassinato de Celso Daniel não pode ser desqualificado,
ainda que ele não seja "flor que se cheire". Leia:
Por que calar Marcos Valério?
José Nêumanne
O que Marcos Valério Fernandes de Souza tem a dizer sobre a
participação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do
ex-ministro Antônio Palocci no escândalo de corrupção do mensalão não
pode ser ouvido como o verbo divino ou a voz do povo. Condenado a mais
de 40 anos de prisão pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por um rosário
de crimes, o cidadão em questão não é propriamente o que minha avó (e
talvez a dele próprio) chamaria de "flor que se cheire". Mas também não
se pode por isso - e só por isso - considerar in limine que tudo o que
ele tem a dizer seja mentiroso e desprezível. Desqualificar seu
depoimento por esse motivo será o mesmo que negar a veracidade de tudo o
têm dito, falam ou declararão outros réus do mesmo processo - José
Dirceu e José Genoino entre eles.
"Se eu fosse condenado a 40 anos de prisão, também estaria
me mexendo", disse o presidente do Instituto Lula, Paulo Okamotto,
apontado pelo operador do mensalão como o interlocutor dos petistas com
ele. "Não temos nada a temer. Tudo o que ele poderia ter falado falou no
processo", completou o loquaz e truculento presidente nacional do
Partido dos Trabalhadores (PT), Rui Falcão. "Tem que respeitar o
desespero dessa pessoa", avisou o secretário-geral da Presidência,
Gilberto Carvalho, que informou que não o processará. Embora óbvio, o
primeiro argumento não autoriza a negar o direito do réu de falar,
narrar e opinar. A condenação lhe tolhe a liberdade e evita seu convívio
com a sociedade, não o impede de falar. Quanto ao segundo, quem não
deve não teme. E ficam no ar perguntas que não querem calar: como Falcão
ficou sabendo tudo o que Valério teria a dizer sobre o momentoso caso?
Por que Carvalho anuncia desde já que não o processará?
Só que o "homem-bomba enjaulado", na definição exata da
coleguinha Eliane Cantanhêde, da Folha de S.Paulo, tem todas as razões
para se defender. E, mais ainda, o dever, como cidadão, de contar o que
sabe. Ninguém precisa acreditar nele, mas a cidadania brasileira tem
direito de saber o que ele tem a dizer.
A versão de que ele teria sido convocado pelo PT para
pagar pelo silêncio do empresário Ronan Maria Pinto pode ser
estapafúrdia e fantasiosa. Mas o que, afinal, não é fantasioso no
episódio grotesco e macabro do assassinato de Celso Daniel, o então
coordenador do programa do candidato Lula à Presidência? A família do
morto, por exemplo, não dá um tostão furado de fumo podre pela versão da
Polícia Civil paulista (sob governos tucanos e do DEM), à qual o PT se
agarra com fervor religioso, de que o prefeito de Santo André foi
baleado na cabeça, numa madrugada escura e brumosa, por um menor a oito
metros de distância. Aristóteles e seu discípulo Tomás de Aquino
duvidariam disso.
Pode ser que a versão de Marcos Valério seja apenas uma
tentativa de jogar farinha no ventilador para merecer o prêmio pela
delação, com uma redução de sua pena. Mas, no mínimo, ela serve para
chamar a atenção devida para um episódio nunca esclarecido. Que motivos
escusos teria o apolítico João Francisco Daniel, irmão do morto, para
garantir que ouviu Gilberto Carvalho contar que recebia do prefeito
malas de dinheiro vivo e as entregava ao então presidente nacional do
PT, José Dirceu, condenado, como Valério, por corrupção ativa e formação
de quadrilha pelo STF? Tudo o que o respeitável oftalmologista teve de
recompensa pelo depoimento foi um exílio forçado em local incerto e não
sabido em território nacional, interrompido por curtas temporadas para
exercer a profissão no ABC de origem. E que razões pode ter tido o
governo francês para dar asilo político à família de Marilene Nakano e
Bruno José Daniel, que acharam mais prudente passar uma temporada no
exterior para escapar da vingança dos assassinos do ilustre parente?
Afinal, não teria sido um crime banal, um sequestro malsucedido,
planejado e executado por bandidos comuns trapalhões? Nem a Velhinha de
Taubaté acredita nessa versão!
Conceder ou não ao acusado de ter aplicado o desbaratado
esquema de desvio de dinheiro público para comprar adesões a tucanos
numa campanha em Minas e apoio parlamentar a petistas no governo federal
é uma decisão que cabe ao procurador-geral e aos ministros do Supremo. É
assunto no qual não procede a interferência do PT, da oposição e dos
governos federal e estaduais. Da mesma forma, o atendimento ao pedido de
inclusão no programa de proteção à testemunha é da alçada exclusiva do
Ministério Público e do Judiciário, não cabendo a ninguém fora de seus
quadros querer influir ou mesmo opinar. Mas até um palpiteiro de jornal
como o degas aqui pode recorrer à lógica aristotélica ou tomística para
chamar a atenção para o que está por trás desses movimentos, sejam do
condenado ou dos dirigentes do partido de seus colegas de pena.
Valério tem medo de morrer e o legítimo direito de querer
preservar a própria vida e proteger a família. Para tanto recorre ou ao
que de fato sabe e pode incomodar poderosos (Gilberto Carvalho, homem de
confiança de Lula, é ministro próximo à presidente Dilma) ou ao que
seus ex-amigos sabem que fizeram e não sabem se, afinal, ele sabe. Aqui
se repete a anedota do marido que não sabia por que espancava a mulher,
mas desconfiava que ela sabia.
Okamotto pretende desqualificar, em princípio, o que
Valério tem a dizer recorrendo ao óbvio que nada justifica. Falcão se
contradiz, pois, se de fato os petistas não devem e estão certos de que a
testemunha nada de novo tem a revelar, não há o que temer. E ao não
recorrer à Justiça para desmentir sua versão, Carvalho mostra que
prefere manter o caso Santo André na sombra. Então, seria o caso de
deixá-la falar, dando-lhe a oportunidade de se enforcar com a própria
corda. Quem tenta calá-la, seja por que motivo for, deixa no ar um
cheiro de brilhantina (para não dizer coisa menos cheirosa) de que ela
pode ter algo incômodo a contar. E rasgar a cortina que oculta a verdade
sobre por que, de fato, Celso Daniel foi torturado até a morte.
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