domingo, 5 de julho de 2015

"Não" do povo grego põe fim ao sonho europeu.

Votos são contados em Atenas neste domingo

Quando os historiadores do futuro forem narrar os tempos atuais, é provável que destaquem o dia de hoje como o início do fim de um sonho – o sonho europeu. Com a virtual derrota do “sim” no plebiscito na Grécia (na foto, a contagem de votos), tornou-se virtualmente inevitável que o país abandone o euro (ou quase isso, como já escrevi aqui). A criação de uma nova moeda grega, provavelmente o dracma, ou o uso de títulos de dívida pública para saldar obrigacões imediatas do governo, dará uma ilusão de normalidade, mas não resolverá os problemas locais.
Ao contrário, a situação grega piorará – e muito, como também já escrevi. Mas essa foi a escolha dos gregos. O que eles não escolheram foi dar marcha à ré no projeto de unificação que mobiliza toda a Europa há décadas. Será esse, provavelmente, o efeito da decisão de hoje. Ainda que leve tempo e seja um caminho sujeito a idas e vindas, o voto do eleitor grego afetará o futuro de todo o continente – e, por tabela, de todo o planeta.

O projeto da União Europeia surgiu das cinzas da Segunda Guerra. Em vez das disputas que dilaceravam as nações havia séculos e culminaram na guerra que mais matou na história da humanidade, os ideólogos da Europa unida propunham a integração econômica, como forma de criar interesses internos capazes de manter os países unidos, em crescimento, para fazer frente às novas potências globais que emergiam. Um dos principais artífices dessa integração, o político e diplomara francês Jean Monnet, reconhecia todas as dificuldades da empreitada. “A Europa se fará nas crises e será a soma das soluções trazidas a essas crises”, afirmou em suas memórias, publicadas em 1976, três anos antes de ele morrer.

Monnet testemunhou apenas a primeira parte da trajetória que levou da Comunidade do Carvão e do Aço até a moeda comum. Mas sua visão sempre prevaleceu: a unificação teria de ser conduzida pelas elites europeias, capazes de vencer as resistências nacionalistas das populações locais e as dificuldades políticas inerentes a um modelo mais participativo. O preço da adoção desse modelo foi o afastamento da “euroburocracia”, isolada em Bruxelas ou Estrasburgo, do sentimento das ruas nos diversos países que sofriam as consequências de suas decisões. Politicamente, essa tensão jamais foi resolvida a contento.

As tensões na integração monetária já estavam presentes no Tratado de Maastricht, de 1992, que estabeleceu as regras para a moeda comum. Desde o início, ele foi criticado por ser uma solução parcial – a crise grega é apenas mais uma prova de como seus críticos estavam certos. Para promover uma união monetária e cambial (necessárias para emitir a moeda comum), é fundamental promover uma união fiscal, com organismos centrais para arrecadação de impostos e gastos públicos. Sem isso, diz a teoria econômica, haverá desequilíbrios. Mas os países europeus jamais abriram mão do poder político representado pelo recolhimento das taxas e pela formulação dos orçamentos nacionais. Foram estabelecidos limites ao endividamento e metas fiscais no Tratado de Maastricht – mas eles jamais foram respeitados. Os primeiros países a violar os critérios do acordo foram – logo quem? – Alemanha e França, em 2003. A partir daí, era difícil exigir rigor fiscal dos demais, sobretudo da enxurrada de países que começaram a integrar a União Europeia depois da queda do Muro de Berlim. Sem união fiscal, todos sabiam que o euro era um projeto instável, à espera da primeira crise para ser testado. Em 2008, ela chegou.

A crise deixou evidente uma outra deficiência do projeto europeu: a política. O Parlamento Europeu e a Comissão Europeia têm muito pouco poder de fato. A falta de um governo europeu centralizado, com mecanismos regulares de consulta à população, fez do continente refém de políticos locais, populistas de ocasião ou partidos radicais que emergiram no caldo borbulhante das dificuldades – caso do Syriza, na Grécia, ou do Podemos, na Espanha. Prova disso é que hoje toda a Europa se vê presa de um referendo num país na melhor das hipóteses periférico. As instituições foram incapazes de mediar um conflito entredois lados com pontos de vista defensáveis, como já escrevi. Sob o manto da consulta ao povo, o referendo grego foi um mecanismo profundamente antidemocrático para decidir uma questão que envolve cidadãos de outros 27 países.

É possível que se ache alguma solução capaz de manter o euro moribundo na Grécia por mais algum tempo. Mas o mercado financeiro, que decide onde alocar capital, já percebeu que não é possível confiar nos mecanismos que regulam a moeda europeia. Haverá ataques especulativos contra outros países fracos. É provável que novos governos radicais (de direita ou de esquerda) saiam vitoriosos em eleições locais e, com o passar do tempo, a União Europeia diminuirá de tamanho e importância. A vitória hoje será não apenas do populismo do Syriza. Também será daqueles que defendem um modelo autoritário – como o presidente russo, Vladimir Putin, que não tardará a estender a mão aos gregos em dificuldade.  Será a derrota de um projeto baseado na liberdade e na democracia para combater as guerras e desvarios totalitários que já fizeram milhões de vítimas no continente. E a derrota de um modelo de integração para o resto do mundo. Perderá a Grécia, perderá a Europa, perderá toda a humanidade.

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